Seminário de literatura latinoamericana do CRLA-Archivos – primeira sessão 2020
A figura do parêntese e da digressão em literatura
Cécile Quintana
Rania Talbi
(tradução Karina Marques)
Introdução
O ato de colocar sob tensão uma narrativa através da introdução de parênteses ou de digressões pode se desenrolar em vários níveis: aquele da diegese, o da narração, o do discurso ou o da estrutura. Na sua apresentação da análise estrutural das narrativas, Barthes faz um esclarecimento sobre as diferentes unidades narrativas. As “funções cardinais” são as unidades mais importantes da narrativa que asseguram uma função-charneira na narração: “Para que uma função seja cardinal, basta que a ação à qual ela se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história”[1]. De forma oposta, as “catálises” são unidades consecutivas que desempenham uma função completiva e asseguram um papel de preenchimento entre as funções cardinais. Dentro desse quadro de análise, poder-se-ia considerar que o parêntese ou a digressão seria o meio de diferir o encerramento de uma sequência (“Uma sequência é um seguimento lógico de núcleos, unidos entre eles por uma relação de solidariedade, a sequência abre-se quando um desses termos não tem mais nenhum antecedente solidário e fecha-se quando um desses termos não tem mais consequente”[2]).
No século XIX, a arte da descrição, principalmente no período romântico e realista, é um recurso frequente para diferir o fechamento de uma sequência. O que se pode dizer das formas literárias mais contemporâneas e experimentais que, afastadas do compromisso prioritário de “contar uma história”, fazem do parêntese não um acessório, mas o objeto mesmo da narrativa, contradizendo, por conseguinte, o seu princípio de linearidade? Do ponto de vista do estilo, certas figuras cultivam a essência mesmo do parêntese, se pensarmos na preterição, por exemplo, que pretende calar uma informação que é, entretanto, dita muito claramente. Essa figura é muito instrutiva: ela explicita a dupla, ou melhor, a contraditória, natureza do parêntese, que pretende inserir um desenvolvimento ou uma informação secundária, sem importância, ao mesmo tempo que ocupa um espaço singularmente visível (pensemos nos sinais de pontuação introduzindo um parêntese//noções de legibilidade/visibilidade/lido/visto//notas de rodapé/anotações). Um elemento que devia passar ao segundo plano, ocupa, de forma ostentatória e quase intrusiva, o primeiro plano. O mesmo ocorre com a digressão: que lugar ela ocupa? Com qual objetivo? Quais são os seus efeitos? Seria ela um elemento de composição secundária que, não ocupando uma função cardinal, poderia ser suprimida? Ou, ao contrário, manteria ela uma função fática entre o narrador e o narratário absolutamente indispensável? A digressão coloca, inexoravelmente, a questão da forma e da função do distanciamento em relação a um tema (uma estrutura, uma palavra), considerado como principal.
O estudo do parêntese é perfeitamente adaptado a um corpus de narrativas factuais ou históricas. A questão da memória e do esquecimento sendo um dos eixos-chave em torno do qual se desdobram as diversas formas de tensão própria ao parêntese, como realçamos aqui (visível/invisível-oficial/não oficial, etc.).
Noções
Todo texto literário, na sua construção textual e narrativa/poética, baseia-se em duas estratégias, sequencial e segmentadora, que são as estratégias de continuidade e de descontinuidade.
Quer seja dentro de uma visão prospectiva, ou seja, voltada à produção (escrita), ou dentro de uma visão retrospectiva, voltada à recepção (leitura), essas duas estratégias (sequência e segmento) fazem-nos refletir sobre a questão da linearidadedo discurso (Barthes, Iser).
A sucessividadediscursiva imposta pela linearidade do significante linguístico, pela paginação e pela delimitação do objetolivro/coletânea vetoriza e orienta, efetivamente, a nossa leitura: o todo – livro/narração/poema – implica que a soma das partes seja igual ao conjunto, essasomabilidadetem como fundamento matemático a linearização. Dito de outra forma, o significante e o discurso “desenvolvem-se num tempo único e têm características que eles tomam ao tempo: eles representam uma extensão, e essa extensão é mensurável numa única dimensão: é uma linha”[3].
Todavia, nenhum discurso, nenhuma leitura, nem texto algum podem ser exclusivamente lineares, pois como diz J. Derrida “o texto comunica”, ele é, portanto, obrigatoriamente, “deslinearizado”, citando, mais uma vez, J. Derrida. O texto comunica não somente de um ponto de vista interdiscursivo, mas igualmente de um ponto de vista intradiscursivo. Nessa comunicação, o leitor, preso na tensão entre o contínuo e o descontínuo, deverá, obrigatoriamente, extrair-se da sua linearidade enquanto leitor, de sua ordem e de seu espaço de leitura. Essa “extração”(esse desvio/ esses contornos/ essas bifurcações) poderá abranger o narrador, o narratário, a narração igualmente – fazendo-se, dentro de um eixo, ao mesmo tempo, sintagmático e paradigmático, de diferentes formas – lexicais, sintáticas, visuais e gráficas -: a pontuação, a tipografia em geral, as repetições, as reformulações, os discursos citados ou relatados, os discursos polifônicos, as notas de rodapé, a paginação, etc. Segundo
Sabine Boucheron-Pétillon, os parênteses como sinais tipográficos e “intervalos materializados” constituem um procedimento de deslinearização, de desvioe de reorientação, pois eles fazem o leitor entrar não somente em um outro “ritmodiscursivo”, mas igualmente em um “outro espaço discursivo”, assinalando, entretanto, que há, ao mesmo tempo, exclusãoe inclusão com relação ao fio condutor narrativo/poético. A pontuação e a tipografia (itálico, branco, intervalos, etc.) são elas mesmas marcas sintáticas e textuais de desvios, pausase reorientações daescritae da leitura lineares. Todas essas marcas, tipográficas ou não, vão construir, organizar, com os seus valores discriminantes, rupturas, fragmentações, desvios, intervalos, no espaço textual; criando articulações, relações e segmentação no discurso, de maneira superposta, vertical ou horizontal. Poderíamos, assim, falar emhipertextualização, tabularidadeou textos multidimensionais, tanto para o discurso narrativo ou poético como para a leitura, retomando expressões e imagens associadas, sobretudo, ao campo textual digital.
[1]Barthes, R. (1977). « Introduction à l’analyse structurale des récits », in Poétique du récit. Paris: Seuil, p. 21.
[2]Ibid., p. 29.
[3]Saussure, F. (1974). Curso de lingüística general. Buenos Aires: Losada, p. 133.